“A segurança dos veículos elétricos é o primeiro e principal desafio das oficinas”

Entrevista a Henrique Sánchez, Presidente Honorário da UVE – Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos, para o suplemento especial “Check-Up“do n.º 133 da Revista Carros e Motores, de junho de 2024.


Entrevista por: Jorge Flores
Fotos: Estelle Valente

Tempo estimado de leitura: 13 minutos

Sempre que se fala de veículos elétricos, em Portugal, um nome surge à frente de todos: Henrique Sánchez. Fundador e presidente (hoje, honorário) da Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos (UVE) tem sido o rosto e a alma da transformação elétrica do parque automóvel nacional. Preocupado, desde a década de 90, com temas ambientais, em 2011 (ano em que comprou o seu primeiro elétrico, um Nissan LEAF) começou a procurar explicar à sociedade as vantagens destes veículos para um mundo mais sustentável.

O discurso é eloquente e conhecedor, mostrando sempre uma energia contagiável, como se estivesse, ele próprio, ligado a uma tomada.

A entrevista ao Check-up é prova desse mesmo conhecimento. Atravessa os temas com a naturalidade de quem sabe do que fala. De quem estudou o assunto. E não foge a nenhuma pergunta. Nem quando questionado sobre se a descoberta de um poço de petróleo na Namíbia, por parte de uma empresa portuguesa, representa tudo que o que os defensores de veículos elétricos “não precisavam de ouvir”. A tudo responde de forma esclarecida.Na sessão fotográfica, sob a lente de Estelle Valente, pousa (simbolicamente) junto aos antigos elétricos no Terreiro do Paço, em Lisboa. Outros tempos e outros elétricos. E apesar de ser, atualmente, presidente honorário, continua a vestir a camisola da UVE. Ou melhor: camisa, camisola e casaco, todos eles, com o logótipo da associação ao peito.



  • O veículo elétrico é o “inimigo público número 1” das oficinas e casas de peças?

Não, de todo. Os veículos elétricos assinalam grandes mudanças que todo o setor enfrenta nos nossos dias, assim como a sociedade em geral, com os avanços na descarbonização das economias, na necessidade de acelerar a transição energética, no combate às alterações climáticas, na redução acelerada do consumo dos combustíveis fósseis, nos avanços da digitalização, nos automatismos e na inteligência artificial. Os veículos elétricos devem ser encarados como uma oportunidade de mudança, como um alerta, qual passarinho numa mina.

  • Na sua opinião, como está o pós-venda automóvel a adaptar-se às necessidades de manutenção e reparação dos veículos elétricos?

Tem evoluído muito lentamente. No entanto, é de referir alguns bons exemplos. Como qualquer máquina, os veículos elétricos sofrerão de desgaste nalguns componentes, da necessidade de reparações ou substituição de algumas peças. No entanto, em muito menor grau, pois desaparece um enorme conjunto de componentes que os motores de combustão interna necessitam. Dois dos bons exemplos são a EVolution e a EVA Network, que se dedicam à assistência técnica de veículos elétricos: reparação de baterias, upgrade de baterias, substituição de baterias, conversão de veículos com motores de combustão em veículos elétricos.

  • Acha que deviam ser criados programas de capacitação – e intensificar os de certificação – para os profissionais das oficinas lidarem, especificamente, com esta (ainda) nova realidade?

Claro, é até algo que já começa a existir com cursos de formação certificada e com vários cursos em Institutos Politécnicos, um pouco por todo o país, com cursos vocacionados para os motores elétricos e para as baterias. No caso das baterias, temos tido grandes avanços tecnológicos com novas químicas e componentes das mesmas que requerem formação adequada. Também existem cursos em diferentes universidades dedicados aos motores elétricos e às baterias. Temos avanços, mas precisamos de avançar ainda mais rapidamente. O futuro assim o exige.

  • Quais são os principais desafios das oficinas na prestação de serviços aos veículos elétricos?

A segurança é o primeiro e principal desafio. Os clientes têm de ter total confiança na intervenção que é executada no seu veículo elétrico, assim como têm de estar garantidas questões de segurança para todos os seus trabalhadores. Estamos a falar de alta tensão que nos apresenta dificuldades que a assistência elétrica aos veículos com motores de combustão interna não apresentava. Portanto, segurança total em primeiro lugar.

  • Muitos distribuidores de peças estão já a incorporar gamas de produtos que possam servir os veículos elétricos. Qual o conselho que daria a estas empresas?

Cada empresa se posicionará como achar mais conveniente. No entanto, já hoje vemos uma variedade de acessórios que estão disponíveis para veículos elétricos. Alguns são comuns a todo o tipo de veículos, outros são exclusivos para veículos elétricos, como carregadores portáteis, carregadores de parede (wallboxes), extensões elétricas, caixas apropriadas para aproveitamento do espaço livre nalguns modelos devido à não existência dos motores de combustão interna.

Algo que já podemos constatar, hoje, nas oficinas dedicadas aos veículos elétricos, é a total ausência de poluição atmosférica, a não existência de cheiros e manchas características das antigas oficinas. Agora, temos um ambiente mais limpo, mais amigo de todos. A começar pelos próprios trabalhadores, nalguns casos que pude verificar a existência de um ambiente mais próximo de uma instalação hospitalar do que de uma oficina automóvel.

  • Existe alguma iniciativa para aumentar a disponibilidade de peças de reposição específicas para veículos elétricos?

Esse tem sido um problema que urge resolver: a da disponibilidade de peças, que tem diferentes origens. Em primeiro lugar, as baterias, cuja produção ainda não cobre a procura cada vez mais crescente, não só para veículos elétricos como para baterias estáticas para armazenagem de eletricidade. Depois, temos um conjunto de componentes onde se destacam os microprocessadores cuja produção tem sido desviada, infelizmente, para as indústrias militares.

  • Atendendo à sua experiência na matéria, quais diria serem os serviços de pós-venda mais procurados pelos proprietários de veículos elétricos?

Os veículos elétricos não necessitam de planos de manutenção tão assíduos como os veículos com motores de combustão interna por não terem um conjunto de peças de desgaste, como velas, injetores, carburadores, filtros de óleo, sistemas de arrefecimento do motor, correias de transmissão e panelas de escape, entre outros. Algumas marcas até já prescindem de um plano de manutenção e o veículo elétrico quando apresenta alguma necessidade avisa-nos para a marcação dessa assistência. Além dos pneus, das escovas limpa para-brisas, dos filtros de ar e alinhamento de direção, entre outros, o que, de facto, leva os proprietários de veículos elétricos a uma oficina dedicada são problemas com origem na própria bateria. Por exemplo, a diminuição da autonomia/alcance da mesma devido a um problema de uma célula da bateria e, neste caso, a intervenção tem sempre de ser efetuada por técnicos certificados.

  • Quais são as principais críticas que ouve em relação aos serviços prestados pelas oficinas aos veículos elétricos?

A principal crítica é a disparidade de preços no custo da mão de obra na assistência entre um veículo com motor a combustão interna e um veículo elétrico. Embora haja necessidade de técnicos com preparação adequada, nada justifica diferenças de preços, por vezes significativas, dentro da mesma marca, dependendo do concessionário. Este problema será resolvido pelo mercado com o “passa-palavra” entre os proprietários dos veículos elétricos e a denúncia das situações claramente abusivas. O concessionário ou a oficina que preste a melhor assistência ao melhor preço será eleita pelos proprietários de veículos elétricos.

  • Quais os procedimentos recomendados para uma manutenção regular e eficaz de um veículo elétrico?

Os sistemas de monitorização do próprio veículo elétrico identificam, com antecedência, a necessidade de recorrer a manutenção apropriada. Hoje, é comum só nos apercebermos de qualquer falha ou deficiência quando é o veículo elétrico a avisar-nos. Existem já veículos elétricos com mais de 1.000.000 de quilómetros percorridos, existindo mesmo um veículo elétrico com 2.000.000 de quilómetros percorridos. Os motores elétricos não necessitam de manutenção programada como os motores de combustão interna.

  • Acha que devia existir algum tipo de apoio ou incentivo para os proprietários de veículos elétricos em termos de serviços de pós-venda, como existe na aquisição de veículos elétricos novos?

Tudo o que sejam incentivos para tornar mais económica a utilização dos veículos elétricos será sempre bem-vinda. Esses tipos de incentivos em serviços pós-venda deverão ser oferecidos pelas marcas, pelos concessionários oficiais ou pelas oficinas multimarca especializadas em veículos elétricos. Os incentivos estatais devem ser direcionados para a aquisição de veículos elétricos ou para a conversão de veículos com motores de combustão interna em veículos elétricos.



  • Considera que os veículos elétricos são a melhor solução para a transição energética, sendo certo que esta poderá ser feita através de um mix energético que inclui outras soluções atualmente existentes?

A transição energética é fundamental e crucial para mitigarmos os efeitos catastróficos, que já hoje podemos constatar, diariamente, um pouco por todo o mundo: as alterações climáticas. No setor dos transportes rodoviários é, seguramente, ao dia de hoje, a melhor tecnologia para a eletrificação de um setor com responsabilidades, cerca de 21%, nas emissões de Gases com Efeito de Estufa (GEE). Inclusivamente para o transporte pesado de mercadorias ou de passageiros já começam a existir soluções válidas. É comum nas grandes cidades já vermos frotas de autocarros 100% elétricos a circularem. Também para os transportes marítimos e aéreos começam a aparecer as primeiras soluções exclusivamente elétricas, sendo que, nestas áreas, não é de descartar formas híbridas que conjuguem baterias, sistemas eólicos (na navegação), o hidrogénio e o solar fotovoltaico.

  • A descoberta de um poço de petróleo da Namíbia por parte de uma empresa portuguesa era tudo que o que os defensores de veículos elétricos “não precisavam de ouvir”?

O problema não está nas reservas de petróleo que se vão descobrindo. As grandes petrolíferas sabem, melhor do que ninguém, que reservas existem, mas, também, sabem que a utilização dos combustíveis fósseis tem de diminuir rápida e drasticamente. É um contrassenso continuar a explorar os combustíveis fósseis para virem a ser utilizados em cidades onde, seguramente, o uso de veículos com motores de combustão interna será restringido e, muito provavelmente, proibida a sua circulação nas áreas centrais das mesmas, o que, aliás, já acontece nalgumas capitais europeias.

Quem não se lembra das imagens de algumas cidades, nomeadamente na Índia, onde os seus habitantes já têm de usar máscaras para se deslocarem durante períodos cada vez mais prolongados? Já vimos o enorme iceberg à nossa frente, mas recusamos dar as ordens de inversão de marcha para a “casa das máquinas”, qual Titanic…

  • Acredita que, um dia, seja possível Portugal ter um parque circulante composto, maioritariamente, por veículos 100% elétricos?

Não só acredito, como tal será uma realidade mais cedo do que se possa imaginar. A Noruega, que, muitas vezes, é referida como um bom exemplo, já atingiu um parque circulante de veículos ligeiros 100% elétricos de 18%, dados do EAFO (European Alternative Fuels Observatory) de 2022. Em Portugal, esse número atinge os 2.5%, dados de 2023 (ACAP e IMT). Na Noruega, as novas matrículas de veículos 100% elétricos situam-se nos 72%, portanto o parque de veículos elétricos continuará a crescer a um ritmo acelerado. Em Portugal, as novas matrículas de veículos 100% elétricos atingem os 17%, o que também irá contribuir para um crescimento do parque circulante de veículos 100% elétricos. Será sempre um processo longo, mas os avanços são significativos.



  • Quais considera serem ainda os principais entraves à compra de veículos elétricos por parte dos consumidores?

Em primeiro lugar, a falta de informação e a desinformação existente que propaga mitos há muito esclarecidos e a divulgação de informação falsa sobre o grau de crescimento da mobilidade elétrica em Portugal e no mundo. A oferta atualmente existente no mercado de veículos elétricos ligeiros e pesados, de passageiros e de mercadorias existente em Portugal, o aumento significativo da Rede Pública de Carregamento para Veículos Elétricos.

Algo que é frequentemente dito é que: “não posso carregar em casa, portanto não posso ter um veículo elétrico”. Já nos interrogámos que quem tem um carro com motor de combustão interna (gasolina ou gasóleo) também não o pode fazer em casa? O que é curioso é que, no caso dos veículos elétricos, posso fazê-lo em casa ou no trabalho. Ou quando vou a um centro comercial, simplesmente posso carregá-lo em carregadores na via pública ou em casa (claro naqueles casos em que tal é possível), algo que está totalmente vedado aos motores de combustão interna.

No entanto, são necessários mais incentivos à aquisição de veículos elétricos – que, este ano, ainda não foram anunciados -, mais discriminação positiva no estacionamento público, nas portagens das autoestradas, nos ferry-boats, no acesso aos parques nacionais e reservas naturais. Sendo algo que se baseia numa tecnologia inovadora e disruptiva, tendo os veículos elétricos um preço associado ainda superior ao de um veículo equivalente com motor de combustão interna, todos os incentivos deverão fazer parte deste esforço de eletrificação dos transportes rodoviários.

É preciso mais informação, informação credível, desmistificar os mitos que persistem na comunicação social e nas redes sociais. Muito importante ainda é fazer um test drive, constatar por si mesmo as grandes vantagens dos veículos elétricos. A próxima edição do Encontro Nacional de Veículos Elétricos – ENVE, organizado pela UVE, vai realizar-se em setembro, nos dias 21 e 22, no Passeio Marítimo de Algés, em Oeiras, onde estarão disponíveis dezenas de veículos elétricos para test drive. Fica desde já o convite para a visita e a realização de test drives.

  • Considera que o setor automóvel é o “alvo mais fácil” sempre que se fala em descarbonização quando o setor marítimo, por exemplo, é dos mais poluentes do planeta?

É “mais fácil” pela simples razão de que é menos exigente produzir tecnologia para um veículo rodoviário, seja ele ligeiro ou pesado, do que para um navio. De facto, o setor marítimo tem um impacto muito negativo na poluição atmosférica. No entanto, a tecnologia para eliminar as emissões de Gases com Efeito de Estufa (GEE) de um navio é bem mais complexa do que num veículo rodoviário. A esta questão, acresce que, no caso do transporte rodoviário, não só é possível motivar empresas a eletrificar as suas frotas, como os próprios cidadãos, individualmente, podem contribuir para a redução significativa das emissões ao utilizarem veículos elétricos. De salientar que os grandes poluidores são os cargueiros e petroleiros. Portanto, com menos consumo de combustíveis fósseis menos petroleiros seriam necessários para o transporte do crude.

Consulte a edição digital da Revista Carros e Motores n.º 133 e do respetivo suplemento Check-Up

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